Siria:
Quem é quem neste solo de horrores:
Homens ou Feras?
Lívia Abdala
Estive lá, eu vi e pisei nas areias de sangue. Apesar de integrar um grupo humanitário formado por representantes de diversos órgãos oficiais do Líbano e Turquia, fomos barrados pelo Governo de Assad, e para nosso espanto até mesmo por seus opositores [ditos rebeldes nacionalistas]. Reinam desconfiança e, ódio. Implantadas barreiras fortemente armadas para impedir a entrada de” جماعات المعونة ”[ajudadores ou pacificadores], as fronteiras lacradas por cercas de arames farpados e soldados do Ditador.
Nosso guia Karine Sumani esclarece que o bloqueio se agigantou após a visita dos Observadores da ONU que por Síria estiveram, e além de ajuda alguma, ainda levaram para o mundo noticias inverídicas, tanto sobre o Ditador quanto sobre as alianças de resistência.
Aos milhares, por diversas cidades os manifestantes fortemente armados, protestam incessantemente. Poeiras de vidas se erguem meio a estilhaços, gritos, desespero e funerais. Já nem se sabe quem morre ou quem mata. Tiros e bombas riscam céus e solos, tanto das tropas de resistência quanto das forças de segurança do governo.
Ficamos abrigados nos acampamentos dos Médicos Sem Fronteiras, aonde além de feridos e quase mortos nos chegam informações sobre os horrores das lutas nas diversas cidades da Síria. Os principais confrontos na cidade de Deraa.
Depois de um fim de semana no qual carros-bomba explodiram em Damasco e em Aleppo, as duas maiores cidades da Síria, a madrugada foi marcada por confrontos entre os rebeldes e as tropas leais ao ditador Bashar al-Assad no bairro de Mezzeh, em Damasco.
Explosões e o som de armas automáticas e dos voos de helicópteros ensurdecem e apavoram a todos.
O que exatamente ocorreu em Mezzeh ninguém sabe às claras. Nada é confiável, noticias de martírios, flagelos, prisões e mortes é o que se tem a cada hora. Assim como, de que entre opositores de Assad, infiltrados grupos de mercenários frios e assassinos, contratados e enviados pelo Ocidente- leia-se EUA. Ativistas anti-Assad assim afirmam, como também afirmam ser impossível identifica-los, mas garantem que estão presentes e misturados entre eles. Dizem, são terroristas sanguinários e hábeis em seus disfarces. Soubemos da chegada de Diplomatas ligados a ONU e a Liga Árabe ao país com a missão de tentar implantar o plano de paz proposto por Annan no início do mês. Mas o clima é mais propenso para a confrontação.
Um dos membros de nosso grupo, vindo da Turquia nos conta que em seu País o número de refugiados sírios chega a 16,1 mil e que muitos deles manifestam explicita vontade de retornar, tão logo consigam armamentos suficientes.
Segundo informam os que por lá estão, a onda de protestos em Deraa é um dos maiores desafios enfrentados pelo presidente Bashar Al-Assad desde que ele assumiu o governo, no ano 2000.
As Forças de Segurança ameaçaram invadir uma mesquita, alegando que ela estava sendo usada por gangues para estocar armas. Em um comunicado, o governo disse que na mesquita havia "crianças raptadas" que estavam sendo usadas como escudos humanos.
Onde a verdade?
O que vi, são homens transfigurados em bestas-feras. Já perderam as humanidades que lhes restavam.
A capital síria registra todas as noites confrontos entre tropas leais ao regime e combatentes do Exército Sírio Livre (ESL), formado em sua maioria por soldados desertores.
A Primavera Árabe vive na Síria um de seus episódios mais complexos. A quem interessa esta derrama? Onde a verdade dos fatos? Que Assad é um tirano, sabemos. Mas, entre os grupos opositores , com que tive contato o que vi , são homens transformados em bestas-feras.
Nenhum lado na Síria é melhor que o outro.
Ainda que livre de Assad [se...] nada será o mesmo que antes – isto é fato. A Primavera Árabe em seu escopo não é apenas sobre a derrocada de ditadores reinantes, mas também é um movimento de protesto duradouro desafiando, ao mesmo tempo, várias dimensões da ordem social interna, especialmente evidenciando as desigualdades na distribuição de renda, e a ordem internacional, o lugar dos países árabes na ordem econômica global – em outras palavras buscando um fim para sua submissão ao neoliberalismo e aos ditames dos Estados Unidos e da OTAN na ordem global política. Este movimento, cuja ambição é também para democratizar a sociedade, demandando justiça social e uma nova nação e (eu diria) uma sociedade e política econômica anti-imperialista, irá portanto durar anos – o que com certeza terá altas e baixas, avanços e recuos – pois não será capaz de achar sua própria resolução em um período de semanas ou meses.
A situação na Síria é extremamente complexa, se comparada com Egito ou Tunísia, o ponto fraco na Síria é que os movimentos de protesto são muito diversos e confusos. Pelo que vimos e sentimos os rebeldes – não tem nem mesmo um programa político para além dos protestos.
Consensual em nosso grupo: que causar implosões nos Estados do Oriente Médio é um plano dos EUA e Israel. Mas não será tão fácil porque, ainda que sem um projeto politico sustentável, o sentimento nacional é um fator poderoso na Síria.
Retornamos com a alma cheia de estilhaços, marcada pela atrocidade do Homem se auto bestificando e uma impotente compaixão pelos inocentes náufragos desta utopia : a Paz existe?